terça-feira, 31 de março de 2015

Muitos medos

Recentemente por um amigo eu fiz uma viagem, uma grande viagem, e fui até Brasília de avião. Eu não voava há... nossa, não sei desde quando, só lembro de umas pequenas coisas da minha infância, devia ser pequeno demais pra registrar tudo. Tinha o gosto do suco de laranja, a sensação da bandeja e uma vista rápida da janela. E só. Agora eu revisitei essas lembranças em um passeio bem tenso que fiz, e que despertou alguns medos antigos. Cara, que tenso! Quando cheguei precisei registrar o que senti e corri pra escrever esse conto. Não é o meu favorito, mas transmite BEM o que eu passei...

Malditas asas que não batem

Não foi a tremedeira, o bater de queixo ou as mãos geladas que denunciou meu nervosismo, não, com certeza foram os doze longos minutos que eu passei olhando pro encosto da poltrona da frente, cronometrando o tempo de aterrissagem. Apaguei por esse tempo, minha cabeça era um relógio preciso, repassando mentalmente imagens dos filmes que vi, das notícias que li e os números nas listas de sobreviventes de acidentes aéreos.
O terror havia tomado conta de mim e, não fosse uma mão insistentemente apertando meu cotovelo ou a voz que me chamava eu teria ficado ali mesmo, meu corpo descendo e o espírito subindo, pra algum lugar lá em cima que não sei onde. Ao menos espero que suba, e não... bem, seria por pouco tempo. Tão logo saímos do avião eu corri para o banheiro para devolver aquelas bolachinhas que nos deram como “serviço de bordo”. Brincadeira, viu? Depois de esperar duas horas e meia pelo atraso, perto do meio dia, tem coragem de nos servir um petisco desses pra acomodar nossos estômagos durante a viagem.
Saí com o rosto e a alma lavados, parte de mim ficara naquele bacio, e já havia me recomposto o suficiente para engatar em uma conversa quando ouvi a célere frase:
- E Tadeu, não esse esqueça que tem a volta...
--
Eu poderia morrer, tranquilamente, e ninguém sentiria falta. Os motores não haviam ligado e já colara as costas encharcadas na poltrona, os olhos vidrados na telinha dos avisos de decolagem. Que se dane se alguém fumar! Isso caindo, não vai ter pulmão sadio que salve ninguém! Diacho, bem provável que EU comece a fumar agora, meus pulmões já estão se acostumando a puxar muito ar. Será que estou hiperventilando?
As janelas são tão pequenas... e parecem tão frágeis! Será que eu conseguiria escapar? Vejo marcações de saídas de emergência que poderiam muito bem indicar porta para o céu, de nada me valeriam. E essas máscaras de oxigênio... o que menos preciso fazer agora é respirar! Lá fora o céu tá tão claro que só vejo o branco, o que é ainda mais assustador. Sério, quem disse que nuvens são bonitas é porque nunca esteve ao lado delas, porque daqui me parecem blocos de fumaça mortal que faz a nave chacoalhar. Estou tremendo tanto que mal consigo segurar o copo para tomar meu remédio.
- Tadeu, acalme-se. – diz dona Suely, que é quem ocupa o lugar ao meu lado nesses casos.
A senhora que me perdoe mas, nesses casos, a calma que se exploda. Não, espere, sem explosões, nada disso. Escuto um som estranho e olho para as asas, as quais parece que vão desmontar. Oh Meu Deus! Por favor, não, não! Tudo menos isso!
--
- Tadeu, assim não dá. Você não pode pedir pra tomar um calmante tão forte.
- Desculpa, César, mas de outra forma não vai rolar. Eu PRECISO apagar, ou então eu vou ter um treco em pleno ar.
- Você vai ter que aguentar, só digo isso. Vai lá, senta no teu lugar e segura o tranco. É a última parte do percurso.
Mas não é assim simples, César. Eu nem havia me ligado que faríamos conexão em São Paulo, e por quê? Dá pra ir de carro até o Rio e nem demora tanto tempo assim! Deus, eu só quero estar em casa. Não vou mais reclamar de trabalho, sem mais viagens de negócio, até paro de trair minha esposa! Ah, ah... o quê... o que é aquilo? Vai furar a asa do avião, vai...
- CUIDADO PILOTO!!!!
--
- Tadeu era um bom amigo, é uma pena que não resistiu ao vôo...
- Falando assim, César, vai parecer que ele morreu no avião. O cara só desmaiou.
- Eu sei, Jorge, mas tem que entender, desse jeito não vai rolar aquela promoção. Pior, eu posso ter que despedi-lo, onde já se viu vendedor que não consegue chegar no compromisso na hora porque não viaja de avião?
- É, pois é...

Mas Tadeu não reclamou. Em seus sonhos caóticos, causados pelo medo, ele estava muito feliz abraçado com a esposa em um canteiro no meio de uma campina com árvores em volta. Bem tranquilo. Perto do chão. Em paz.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Sofrendo Silenciosamente

Conheço pessoas que não conseguem se expressar, que acham mais difícil dizer que dói do que de se trancar em seu quarto e quietamente deixar que os sentimentos ruins se acumulem. Eu sei como é, já fui desses e ás vezes volta aquela sensação ruim, aquela angústia do silêncio pétreo que causa um bloco no estômago e um buraco na alma, é algo que consome, que tira as palavras da boca e deixa apenas um gosto amargo. Para esses momentos, eu também tenho poesia, uma forma de libertar o que está preso na minha mente e que sei que em algum momento vai explodir em um arroubo de tristeza. E aqui está... a última é inédita, feita especialmente pra agora.

Lamento muito não estar com você

O mundo se distorce ao meu redor
Ancorado em um harpão no meu peito
Que me causa um desespero intenso
Uma sensação de terror imenso
Preciso correr, preciso gritar
Mas na solidão da minha casa
Ninguém pode me escutar
Talvez eu escolhi errado
Em não estar ao teu lado
Talvez eu tenha me precipitado
Eu devo estar muito enganado
Sufoco em minha indecisão
Afundando mais e mais
Na escuridão
Desculpe por te irritar
Com minhas inúmeras lágrimas
Não queria mesmo incomodar
Mas antes de ir embora
Pronto pra me despedir
Quero dizer que só você
Pode me fazer sorrir
Obrigado por existir

Promessas Inacabadas

Se neste curto espaço de tempo
Em que minhas palavras viram pensamento
Eu desistir de me confessar
Nunca mais me dê chance de voltar
Lamento por minhas mentiras
Mais do que as verdades
Já contei muitas histórias
Mas destas não sabes nem a metade
Fui forjador de lendas
Causos, mitos, bobagens
Só não fui ainda
Um herói de contendas
Somente lutei com quem pude vencer
E isso faz de mim um perdedor
Vergonha sinto de assim ser
Mas juro que fiz tudo por amor

Nada que fiz foi em vão

Teve um dia desses, que entre momentos
Eu me dei um instante pra respirar
Vi minha vida, escolhas que fiz
E também todas as minhas falhas
Nesse dia, percebi o tormento
Que é ter que me virar
Pra fazer o que sempre quis
E lidar com as minhas escolhas
Convenhamos, não é fácil ser alguém
Com mente livre e coração
Não ter que explicar pra ninguém
Qual a minha vocação
Sou só um pobre coitado encolhido
Nesses metrôs da cidade grande
Mas se pudesse ser o escolhido
Teria me tornado gigante

domingo, 29 de março de 2015

Desafios ao auto-controle

AVISO: Este post é contra-indicado para pessoas com dificuldade de segurar sua excitação e menores de 18 por conter informações demais. Você foi avisado, se depois ficar na tentação a culpa NÃO é minha.


sexta-feira, 27 de março de 2015

De vez em quando na Terra Média

Como a maioria que eu conheço, comecei também com fanfics, escrevendo algumas coisinhas que não são tão vergonhosas assim, mas que estão no meu passado, e lá vão ficar. Por hora. Bem, mas de vez em quando a vontade volta e eu acabo embrenhando nesse caminho, fazendo pequenas homenagens a personagens que gosto tanto... ou viajando na maionese legal. O texto que trago hoje é exatamente uma versão livre da história que achei tão legal. Espero que para vocês também seja e quem reconhecer as menções e quiser comentar, ficarei feliz. Algumas são MUITO óbvias...

Escadur Fast

- Deixe-me ir, disse o sábio ao rei, poderei fazer o melhor por nosso reino se for a outras terras, conhecer outros como eu, e talvez aprender outros truques.
O soberano, já murcho da fome e do cansaço, ponderou por longos minutos e então acenou ao seu servo mais leal com a mão de dedos finos na qual os anéis pesavam. Provavelmente não teria muitas forças em breve, então evitava os discursos e também os grandes gestos para não gastar as energias.
- Vá, Escadur, e vá rápido pois se não tiveres pressa logo provavelmente também não terás lar, e pousou a cabeça no próprio ombro entrando em um sono profundo e preocupante.
Os outros serviçais entreolharam-se, alarmados, e um deles correu para acordar o rei, mas foi interrompido por seu filho, que de tão magro quase caiu de costas com o toque.
- Deixe meu pai dormir. Há dias que não o vejo fazer isso com tanta calma. A dor da fome nos tomou também o descanso noturno.
Escadur correu ao ouvir tais palavras. Para um velho era ainda muito novo, mal havia completado seus quarenta ciclos solares quando recebera a incumbência de ser o conselheiro mór do rei Kandalth, o Ébrio, e agora temia que talvez não fosse servir aos seus descendentes. Desde que uma maldição se instalara no reino ninguém mais acreditava que haveria um futuro ou talvez mesmo um presente. Os alimentos tocavam-lhe a boca, mas não o estômago, desparecendo tão logo eram absorvidos. Mesmo crianças gordinhas haviam se tornado pequenos ratinhos desnutridos por aqueles dias tristes.
Desconfiado, Kandalth ordenara aos seus guardas que vasculhassem as casas atrás de feiticeiras ou bruxos mal intencionados mas após alguns interrogatórios infelizes constataram que não havia qualquer criatura mágica entre os seus. Apenas quando todas as tentativas deram em nada é que o rei aceitara que talvez fosse preciso pedir ajuda. Agora sobrava a Escadur a missão de visitar todos os seus amigos antigos e torcer para que algum deles já houvesse ouvido falar de tal fenômeno.
Primeiro foi o nobre Ar’khon, imperador da Cidade de Prata, o coração do atual domínio humano, e também o seu mais antigo amigo. Por ser sábio e poderoso, talvez pudesse lhe ajudar em sua empreitada e fornecer os recursos para tanto. Mas, ao chegar a seu castelo, no alto da montanha branca, encontrou o aliado em prantos, desconsolado.
- Grande Ar’khon, líder da bela Kit’has-rah, capital dos homens, o que te aflige, meu irmão?
E diante dos olhos encharcados de Ar’khon, toda a missão de Escadur pareceu minguar, sentiu seu coração murchar e tremeu com a tristeza que agora compartilhava.
- Meu amigo, ó, meu doce amigo, minha amada se foi... após tantos anos, após esse tempo todo que estivemos juntos... minha Haruin faleceu. Amaldiçoado sou eu por ser eterno! Que os deuses me devolvam minha fatalidade e me deixem perecer ao seu lado!
Escadur entendeu de imediato o sofrimento e também chorou. Conhecer Haruin quando era jovem e vira a beleza do amor deles e também temera pelo dia que acabaria. Ar’khon, como o senhor de todos os homens, recebera o dom da imortalidade, que também seria sua perdição. Os outros sábios cantavam que no passado Ar’khon já tivera o coração perfurado por outras paixões mas nenhuma como a por Haruin. E agora que ela se fora, ele se tornaria vazio e talvez os homens estivessem perdidos.
- Venha comigo, Ar’khon, pois sem vossa força talvez meu rei acabe definhando, assim como seu reino...
E explicou tudo, em todos os detalhes. Sentiu nascer nos olhos e também na alma de Ar’khon uma chama. Sabia que ele tinha um carinho por Kandalth, a quem considerava um filho, e quem sabe o fosse. Já vivia há tanto tempo que provavelmente todos os humanos de Gaia Sancta fossem seus herdeiros.
- Eu irei, meu adorado Escadur, e salvarei o reino de seu soberano!
Partiram da Cidade de Prata seguindo caminho para as florestas de Shantel, lar de Regulos, o Alto, um dos poucos homens a domar o caminho do arco e comandar o exercíto dos Álficos, os primeiros seres de Gaia Sancta. De pele esverdeada, olhos em tons de caramelo e longos cabelos dourados, esses hominídios eram mais inteligentes e gentis que os humanos, mas possuíam também vida mais curta. Regulos em si já chegara aos cinquenta e mostrava sinais de que não duraria muito mais, mesmo assim veio saudá-los com afeto e energia.
- Oh, meus amigos, que bons ventos trouxeram vocês à minha morada?, e recebendo as notícias seu rosto se converteu em uma máscara de pena, Não me diga, Escadur, Kandalth não sobreviverá? Ó, por favor, que ele possa ver meu enterro e que derrame lágrimas por mim, não suportaria imaginá-lo em um caixão.
- Então, Regulos, não haveria nada que você poderia nos dizer para ajudar? Pois a mim e a Ar’khon só sobrou questionar nossos amigos.
De olhos lacrimejantes o caçador negou e deixou-se cair em sua cadeira de vime. As mãos coçaram as têmporas, visivelmente incomodado. Por fim mandou chamar Khimbi, seu mais fiel e antigo companheiro, e também o estranho no ninho. O meio-urso tinha uma barba espessa que se confundia com seu pelo amarronzado cobrindo o peito. Fez uma reverência para Ar’khon, a quem reconhecia como majestade das terras em volta e abraçou Escadur.
- É bom vê-los novamente após tantos anos. Mas por que vieram até aqui, e trazem feições tão singelas e tristes?
- Nossos irmãos necessitam de ajuda, Khimbi. – disse Regulos e então tocou no ombro dele – Por favor, siga-os em sua jornada e ofereça nosso apoio em meu lugar.
- Mas é claro, meu senhor! Ar’khon, meu lorde, Escadur meu amigo, podem contar com meu machado.
E assim os três partiram em busca da última boa alma que poderia dar a eles alguma luz, Frollo, neto de Bilro, e o mais humilde morador de Baixovale, o território sulista da Gaia Sancta. Outrora um escritor, Frollo narrara as aventuras deles enquanto cresciam como pessoas e também em reputação e era provavelmente a pessoa mais informada em toda terra conhecida pelos homens. Não que fosse um, Frollo descendia do lendário povo dos Maradinos, os esguios e delicados filhos do sol. De bom coração, feições gentis e um ótimo senso de humor, eram hospitaleiros como poucos e mais afetuosos do que seria sensato, geralmente cometendo falhas de confiança em excesso.
Sua mansão, a maior em toda Baixovale, era também a hospedagem da maioria de seus parentes, pessoas de bem e tão divertidas quanto ele e que receberam os três com muita alegria. Ar’khon pareceu ganhar vida ao ser conduzido pelas mãos dos diminutos e frágeis filhos de Frollo até seu estúdio na torre mais alta. Lá, encontraram o amigo cercado de pilhas de papéis e olhos cansados. Parecia ter envelhecido décadas desde a última vez que se viram.
- Ar’khon! Escadur! E o bom e velho Khimbi! Saúdo-os e recebo em minha casa. Vejo que estão precisando de um bom chá de erva-madre.
- A verdade, Frollo, é que chegamos com pesar no coração. Precisamos de sua ajuda...
E foram contando tudo, cada pedaço da jornada iniciada com o Rei Kantalth até o momento em que pisaram em Baixovale e com isso a expressão de Frollo foi mudando e mudando até chegar a uma de quem tinha algo a dizer. Coçou a cabeça de cabelos encaracolados e pegou um de seus livros, o qual devorou em segundos. A fome dos Maradinos não era só por comida e muitos tinham o conhecimento acumulado de toda uma nação. Quando acabou fechou o livro e recostou-se na cadeira fumando seu cachimbo de bambu.
- Kantalth está com os dias contados, meus amigos, e não há nada que possam fazer... e eu sugiro que não procurem mais. Retornem para casa e vão descobrir que tudo seguirá seu caminho. Acreditem em mim, verão dias melhores em breve. E mais, Khimbi, digo também que você terá que tomar decisões difíceis em breve. Talvez a você Ar’khon, reste a missão mais fácil mas também a mais pesarosa.
Com estas palavras, Ar’khon, Escadur e Khimbi se sentiram afundar em seu desespero e tomaram o caminho de volta. Encontraram Shantel em estado de caos, Regulos, o Alto, morrera em seu sono e agora estavam sem líder. Coube a Khimbi assumir o papel e viram o povo comemorar o surgimento de uma nova estrela a lhes guiar, uma que duraria muitos anos e que poderia levar-lhes em uma nova direção. Regulos teve um enterro digno, aos pés da árvore de seus pais.
Ar’khon também teve uma surpresa ao retornar para casa e perceber que o luto passara e o povo agora precisava dele novamente. Haviam muitas decisões a tomar e logo sua cabeça se encheu do orgulho de seus homens que batalhavam para trazer um sorriso a seu imperador. Teve de abandonar também sua tristeza e ocupar seu lugar. Em dias seus olhos voltariam a brilhar, em meses não teria mais pesadelos, e em anos aceitaria nova mulher em seu coração.
Já Escadur, em galope constante, atravessou as fronteiras do reino e percebeu que o povo não estava nas ruas. Com medo, encaminhou-se ao palácio, esperando ver as bandeiras negras, mas pelo contrário, nas paredes haviam flâmulas de diversas cores, e trombetas e música, e dança e o sábio viu as pessoas em vestes novas e não mais definhando. O próprio príncipe se unira a elas, em uma alegria que há muito Escadur não via. Aproximou-se dele desconfiado e foi recebido com um abraço apertado.
- Escadur! Você voltou! Viva! Amigos, aqui está o homem mais honrado e mais dedicado de nossa corte! E também o melhor de todos nós!
- Não entendo, meu príncipe, quando saí estas pessoas, o senhor mesmo e seu pai sofriam de fome terrível... e agora...
- Ah, mas meu pai está bem! Todos estamos ótimos! Há poucos dias, quando achávamos que você não voltaria mais, um pássaro de fogo cruzou os céus e entrou nos aposentos de meu pai. O incêndio começou imediatamente, e todos entramos em pânico, mas de tão exaustos e fracos nada pudemos fazer. Juntamos as cinzas e estávamos prontos para o funeral quando do meio da sujeira meu pai saltou nu em pelo e totalmente curado. E mais, ele irradiava um calor intenso e uma felicidade sem igual. Sua energia contagiou a todos e logo estávamos nos banqueteando.
- Mas que maravilha! Que emoção! Oh, fico tão feliz com pelo menos esta boa notícia! Mas... por que você me louva se nada fiz?
- Meu pai disse, tão logo estava lúcido e bem para falar, que o pássaro, antes de queimar sua cama e as cortinas, olhou em seus olhos e ele reconheceu sua vontade. Era o seu coração Escadur, que de tanta tristeza liberou todo seu amor por nós para nos salvar. Ele veio até aqui e nos chamuscou com sua bondade. E agora estamos salvos, meu amigo e podemos comemorar.

Escadur soube que era verdade e de olhos cheios lágrimas foi ter com o rei que o abraçou e beijou como o melhor amigo que já tivera. Não poderia se vangloriar pelo feito e muito menos dizer que tinha sido planejado, mas estava feliz por ter todos de volta. Tinha feito sua jornada e ido lá e cá, até finalmente voltar ao seu lar.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Tiros, tiros pra todos os lados

Eu adoro histórias policiais, de todos os tipos. Vez por outra pego um livro do gênero e me divirto tentando desvendar o mistério antes dos detetives, e ás vezes até acertando. Aprendi muito com Holmes, Poirot e tantos outros personagens do gênero. Mas eu não acho que consiga reproduzir a genialidade deles, por mais que ás vezes eu acabe tentando escrever alguma coisa parecida. Hoje fui obrigado, pra uma inscrição pra uma antologia, a voltar a isso. E foi mais uma vez um desafio enorme. Se conseguir ou não vocês saberão em breve, senão nas páginas de um livro, ao menos aqui, onde devo publicar esse conto. Por hora, tragou outra obra do gênero que me deleitei escrevendo. É curto, mas é de coração. Com vocês...

Charlotte Wintons e o Assassino de Encontros 
(nem sei porque dei esse título)

Charlotte Winston largou o cachimbo pensativa. Haviam poucas coisas que odiava tanto quando o fedor do fumo, talvez as cores do céu em dias nublados, o barulho ensurdecedor do trânsito em segundas-feiras ou a marca feia que ficava no chão ao tirarem os corpos depois de um homício. Era segunda, o tempo estava armado para chuva desde sexta e um cadáver acabara de ser removido para o IML, deixando para trás uma poça de sangue seco. Seu assistente, Marcos, tampava o nariz e a boca com um lenço.
- Charlie, tem certeza de que quer participar desse caso?
- Quieto, Igram, preciso me concentrar. Observar os detalhes.
Apesar de chateada, Marcos Igram tinha certa razão. Trabalhava como detetive junto à polícia em casos que envolvivam assassinato, violação ou qualquer tipo de violência à mulheres, mas aquele em específico estava deixando seu estômago parecendo uma cassarola italiana. Não havia só uma vítima, a própria casa estava permeada de outros possíveis homicídios e os peritos haviam passado a manhã toda avaliando os outros quartos. Se estivessem certos, havia um serial killer que demorara pra cometer seu primeiro erro.
- Esse filho da mãe está brincando comigo. – ela sussurrou e virou-se ao ouvir passos – Osvald, onde está a testemunha?
- Bom dia pra você também, Winston. – cumprimentou o magro detetive com o qual trabalhava – E não se preocupe com a testemunha, eu vim avisá-la que o comissário a tirou do caso.
- Recuso-me a aceitar. E então? O que fizeram com a garotinha?
- Charlotte, por favor, não crie confusão. A situação já é sombria o suficiente sem suas... hum... sem esses truques que você faz.
- Não são truques, detetive Gomes, são delicadas artimanhas que eu tenho acesso por herança sanguínea. Devo lembrar que meu avô...
- Seu avô fez o exame para ingressar no departamento, era um homem trabalhador e entregava relatórios explicando como concluíra as investigações. O máximo que você já me entregou foi uma folha e ela estava desenhada.
- Paciêcia se você não compreende a arte...
- Por favor, Winston. Só dê o fora. Ou eu mando te prender.
Bufando, Charlotte e seu assistente saíram da casa, quase tropeçando no técnico do IML que vinha buscar os pertences da vítima. A detetive tocou em seu ombro tranquilamente e depois abriu um pequeno sorriso. Marcos simplesmente balançou a cabeça.
- Você fez de novo, não é?
- Não vão me tirar dessa, Marcos. Eles que aceitem.
- Sabe que dessa vez você pode passar mais do que algumas horas na cadeia?
- Desde que eu pegue esse desgraçado, não me importo.
- Então... onde vamos?
- Para a casa do Shepperd. Ela está com eles.
Augustos Shepperd era um dos poucos oficiais que conhecia o segredo de Charlotte e confiava em seus “instintos”. Já prevendo o que aconteceria, pediu à Osvald para ficar responsável pela garotinha que encontrara o cadáver. Além do mais, a Sra. Shepperd adorava crianças e faria questão de fazê-la ficar confortável e evitar a imprensa, os policiais e até mesmo Charlotte se fosse necessário. O que não foi. Por conta das próprias experiências traumáticas, Winston soube se apresentar à criança.
- Olá, Maggie.
- Oi. – respondeu a menina envolta em cobertores e vendo televisão.
- Você parece estar se divertindo aí. O que está vendo?
- Bob Esponja. É idiota. Mas engraçado.
A garotinha não parecia assustada, sequer nervosa, sua expressão estava vazia e seus olhos secos. Charlotte já tinha visto isso antes em adultos, mas era raro em crianças. Margaret Vaughn entendera bem o que tinha acontecido e agora se forçava a engolir as cenas horríveis. Quando seus pais chegassem, não importanto quem fossem, teriam um trabalho tortuoso e cansativo pela frente.
- Maggie, eu só queria te fazer umas três perguntas, pode ser?
- Três?
- É, só três. – desde que começara a trabalhar com isso, Charlotte aprendera que era melhor dizer o número de perguntas para deixar a pessoa mais relaxada. Se precisasse “lembraria” de algo de última hora e emendaria em outra.
- Tudo bem então.
- Você foi até aquela casa sozinha?
- Eu... eu estava querendo um lugar tranquilo pra pensar. Briguei com minha melhor amiga e ela ficou tão brava que espalhou pra escola toda que eu beijei Kenny Martinez. E eu não beijei! Ele é muito feio! – Maggie torceu o nariz de um jeito infantil e engraçado – Aí, aquela casa fica no caminho pra escola. E eu achei que não tinha ninguém lá...
A pausa no final deu sinal à Charlotte que tocou na mão da menina. Imagens de um longo corredor, o mesmo que passara há uma meia hora, do quarto onde a vítima foi encontrada com o sol ainda se pondo, e até mesmo o grito que Maggie deu ao ver a cabeça virada ao contrário do cadáver, o que o tornara irreconhecível, tudo isso soltou à mente de Charlotte.
- Entendo, deve ter sido aterrorizante de repente encontrar alguém lá. Mas... você só viu a moça, Maggie?
Os olhos da menina finalmente marejaram, e duas lágrimas anteciparam a cachoeira que viria. Maggie provavelmente estava esperando alguém perguntar isso para desabar, e Charlotte ficou contente que fosse com ela. Mesmo que não soubesse como agir sempre, havia pelo menos a chance de captar algo mais que a menina não lembrasse agora. Segurou firme a mão dela e insistiu.
- Havia mais alguém lá, Maggie?
- Eu... não sei... eu ouvi...
E então Charlotte ouviu. Foi um barulho seco, como se alguma coisa tivesse caído no chão de madeira, e perto o suficiente para deixar Margaret ainda mais apavorada. Depois tudo ficou nublado, como sempre acontecia quando alguém entrava em pânico. A mente fica turva nessas horas e as memórias se embaralham, mas Charlotte encontrou uma única coisa ali no meio que a deixou encucada. Viu Maggie se virar e sair correndo, fugindo da casa, mas na volta pelo corredor uma porta que estava fechada antes se abrira levemente, como se alguém estivesse espiando.
- Tudo bem, Maggie, tudo bem. Não se preocupa. Agora, a próxima pergunta é bem importante, ok?
- Tá.
- Você prefere sorvete de chocolate ou morango?
Depois de servir uma gloriosa taça para a menina (Marcos que lhe ensinara o valor curativo moral de um potão de sorvete), Charlotte se encontrou com seus parceiros na outra sala. Augustus parecia incomodado, mais pela bronca que levaram de Sophia por terem feito Maggie chorar, e Marcos mexia em sua tablet, fazendo anotações que só Deus sabia pra que serviam. Charlotte mordia a unha do dedo mindinho, seu hábito de quando estava juntando peças importantes.
- O assassino ainda estava lá quando Maggie entrou. E ele a viu. Estava em um dos cômodos no corredor, o segundo à direita, próximo da escada.
- É um escritório. – disse Marcos e continuou falando quando recebeu olhares dos dois – Eu presto atenção nessas coisas, sabe?
- O escritório foi um dos poucos cômodos em que os peritos não ficaram. Disseram que o luminol não reagiu, então focaram nos outros. Haviam muitos deles. – explicou Augustus.
- Então há uma boa chance de que eu consiga entrar lá sem ser vista.
- Não sei se é uma boa ideia, Charlie. – disse Augustus – Se Osvald te pegar lá... você sabe que ele sempre teve ciúmes do seu sucesso. Ele vai fazer de tudo para te quebrar as pernas e o comissário não vai se importar se você for presa por obstrução à justiça.
- Calma, Augustus, eu não vou ser pega por Osvald. Posso garantir.
- O que te dá tanta confiança, garota?
- Eu sou uma gatuna... e Osvald é um pássaro. Gatos sempre pegam pássaros, não o contrário.
Sem entender, seus parceiros se entreolharam preocupados. Mas no fundo sabiam que Charlotte tinha razão. Ela entrara nessa vida se infiltrando em cenas de crime e resolvendo-os discretamente, enviando as provas para a polícia. Agora, que estava ao lado deles, se tornara ainda melhor em se esconder. Graças à ajuda de Augustus e mais uns figurões dentro do departamento Charlotte era chamada para ajudar em alguns casos, mas gente como Osvald e o comissário gostavam de se opôr, tanto por considerá-la um estorvo quanto por ficarem brabos que ela resolvia os mistérios no lugar deles.
Cerca de meia hora depois ela pulava pela janela da cozinha, esgueirando-se por baixo dos móveis para chegar ao corredor e então caminhando pé ante pé até a porta do escritório. Com um toque suave a maçaneta girou e abriu espaço para que ela entrasse muito rapidamente, sem deixar vestígios. O pequeno cômodo possuía uma única janela trancada com grossas tábuas, várias estantes com livros cobertos de teias, umas caixas fechadas com uma fita amarelada de tão velha e uma escrivaninha sem cadeiras. Em cima de tudo os lençóis revirados pela polícia que provavelmente tiraram grande parte das pistas.
Usando uma lupa, um lenço, um cotonete e luvas plásticas, Charlotte cobriu o cômodo praticamente todo, reservando atenção redobrada para a escrivaninha, imaginando se o assassino havia se escondido ali antes, e também para a parte de trás da porta. Encontrou um fio de cabelo na maçaneta, meia impressão digital na borda da mesa e um botão não empoeirado perto da janela. No momento em que levantava a porta abriu subitamente, e ela teve que se jogar para baixo do móvel.
Ouviu passos apressados e o pigarro de alguém, provavelmente precisando urgente de um xarope. Haviam pelos menos duas pessoas ali, e ambas conversavam baixinho.
- ... e é isso, Osvald, não há nada aqui pra trabalhar. Estou lhe dizendo, você PRECISA falar com seus informantes para encontrar o tal Pierre...
- Basta! – falou Osvald baixo mas com firmeza – Eu não posso fazer isso, já disse. Se o comissário descobre que pode ser esse cara...
- Ele vai pensar duas vezes antes de lhe tirar do caso. Mais do que isso, pode ser o crime da sua vida. Quem sabe uma promoção?
Osvald fez um som peculiar, como um mugido bovino, seguido de uma risada. Ela já o vira nessa situação antes, e era geralmente antes dela humilhá-lo com a resposta certa para os enigmas teoricamente insolucionáveis. No momento, no entanto, era melhor que Charlotte continuasse quietinha no seu canto.
- Tudo bem, Arthur, avise ao Doyle que vou sair e ele deve cuidar de tudo. E se aquela metida da Winston aparecer...
- Ordem de prisão, Osvald, sem problemas. Apesar de que acho um exagero, ela até ajuda normalmente, não é? Como no caso do pergaminho cifrado...
- Cale-se! Não quero ouvir mais!
A porta fechou em seguida, abafando o som dos homens indo embora. Charlotte esperou pacientemente até ter certeza de que não voltariam e abandonou seu esconderijo. Agora havia mais uma razão para se meter nessa história, já que isso poderia significar a subida de Gomes na hierarquia da polícia. Não que o detestasse, pelo contrário, mas se ele estivesse muito superior a ela (e não aceitaria que, por não ser policial, ele já estivesse), com certeza suas participações seriam ainda mais raras.
Furtivamente, Charlotte saiu da casa e foi atrás de um táxi. Osvald Gomes poderia ter informantes decentes, muitos dos quais eram conhecidos dela, mas se queria encontrar um homem chamado Pierre havia apenas uma pessoa a quem deveria perguntar: Madame LeMoon. E por sorte o cabaré Sin in la Luna ainda não estaria aberto, o que era entrada garantida no local.
Jamal Bron já estava na porta e assim que viu a garota chegando fez uma pose de mal-encarado, cruzando os fortes braços em formato de toras.
- Identidade, moça.
- Qualé, Jamal, deixe-me entrar. Preciso ver a madame.
- Menor de idade não entra no cabaré, garotinha.
- Você e eu sabemos que se isso fosse verdade, então você seria preso por pedofilia, Jamal. Agora, me deixa entrar. Outra hora eu te compenso.
- Jantar no Space Burger na sexta? – perguntou ele com um grande sorriso.
- Combinado.
Do lado de dentro, o Luna estava a toda, com as garotas correndo de um lado pro outro, os rapazes ensaiando os movimentos do espetáculo e o músico manco saltando no palco, aos gritos de “Vamos, seus abutres! Quero vê-los voar hoje!”. Madame LeMoon observava tudo de seu camarote, os olhos atentos a qualquer chance de erro. Ela viu Charlotte se aproximar e preparou-se para o pior.
- Madame, sinto muito por invadir assim...
- Charlie, estou esperando pelo dia que você entrará aqui como cliente... ou talvez com um currículo... apesar de que você não precisa de um.
- Não me faça corar, Rosalie, eu preciso de uma ajuda. Uma informação.
- Sabe que não sou dedo duro, Charlie, nem para a polícia e nem para você.
- Não é preciso, mas a pessoa que procuro pode ser um assassino de várias mulheres.
Rosalie LeMoon fechou a cara e pediu que continuasse e então Charlotte lhe contou tudo, da menininha assustada ao homem que se escondeu na casa abandonada. Quando terminou falando sobre Pierre, percebeu que a madame desviou o olhar, muito pensativa.
- Pierre... talvez...
- Você o conhece, Rosalie?
- Ouvi falar de um estrangeiro, um estivador, que chegou de navio há uns dois meses. Ele causou problemas a Sahid e acabou expulso das docas.
Qualquer homem que conseguisse irritar o bom e velho Sahid ih Fajid deveria ser uma pessoa medonha. O capitão do Estrela do Amanhã era tão gente boa que provavelmente já fora roubado mais vezes conscientemente do que por ladrões de verdade. Seu coração de ouro o fazia ser querido por todos, inclusive Charlotte.
- E por que pensou nele?
- Sahid me disse que era um pseudo-francês metido a besta, e que ele passou dias cantando as mulheres que iam ao porto para levar comida aos seus maridos. Mas o principal é... ele usava a faca de estivador bem demais, como se tivesse prazer em cortar coisas.
- Entendo... faz sentido. E você sabe o que aconteceu com ele depois?
- Os marinheiros o mandaram embora, mas na realidade queriam enviá-lo de volta à França ou de onde quer que tenha vindo em um caixote. Soube que tentou a sorte em outros pontos da cidade, e sumiu depois de passar pelo Beco do Suicídio.
O principal ponto turístico da área mais barra pesada da cidade, o Beco do Suicídio na verdade era uma ruela que terminava na porta de uma igreja abandonada. Ali já haviam morrido muitas pessoas, poucas por vontade própria. Diziam que qualquer um que se metesse ali, sozinho, à noite, estava querendo entregar a vida ao diabo. E pior, não era tão longe da casa em que aconteceu o assassinato.
- Obrigado, Rosalie. Eu tenho o que fazer com isso.
Visitar o Beco do Suicídio era uma das poucas coisas que Charlie precisava realmente de Marcos Igram para fazer, então lá estavam os dois, ajoelhados diante de uma poça de sangue que ela acabou descartando. Se Pierre houvesse perdido tanto sangue assim, então seria ele a vítima e não a mulher que Margareth encontrou. Depois de alguns minutos, ambos se encostaram na parede, um de frente pro outro, muito nervosos.
- O que fazemos agora?
- Olha, Marcos, se eu tivesse uma resposta... eu já estaria fazendo.
Como se respondendo à pergunta dele, um barulho veio do fim do Beco, e viraram-se a tempo de ver uma tábua caindo. Um par de olhos escuros surgiu nas sombras e de repente se virou e saiu correndo.
- Vamos!
- Espera! Ei! Charlie!
- Pode ser o francês! Vem!
Antes que Marcos pudesse dizer mais alguma coisa, Charlotte saltou por entre os pedaços de madeira e pousou na entrada da igrejinha. Um vulto subia as escadas que levavam ao altar e ela o seguiu, indo pelo labirinto de ruínas e tendo que desviar aqui e ali de bancos jogados sobre os outros, pedaços do teto que caíram com o tempo e uma estátua de São José quase em tamanho real que ocupava metade da passagem.
Quando enfim o alcançou, ele se lançava por uma janela quebrada em direção a um prédio nos fundos. A distância entre as duas construções era possível para Charlotte que não hesitou em segui-lo, mas assim que os pés tocaram o piso do outro lado, uma mão veio em direção a seu rosto acertando-o em cheio. Ela apagou.
Sentiu algo roçar nas pernas e percebeu que os pulsos e as canelas estavam firmemente presos por cordas. Abriu os olhos para ver um homem vindo com um martelo e uma longa faca afiada. Seu rosto era bonito, apesar de maltratado, e haviam olhos fundos, como se não dormisse há meses. Um crucifixo enorme pendia de seu pescoço e balançou quando ele parou logo diante dela, o corpo curvado e o rosto a milímetros do seu.
- Mas que vadia você é... e ainda por cima insistente.
- Qual o seu problema, Pierre, por que não me matou de uma vez? Agora vou ter que acabar com você.
- Como... como sabe meu nome?
- Eu estava te perseguindo pra te prender por assassinato. É melhor me desamarrar logo antes que a polícia chegue e te encha de balas.
- Pff... vocês mulheres não sabem o que falam. Acham que ganharam poder e agora podem sair por aí tentando os homens e mandando neles. Pois eu vou te ensinar o seu lugar, sua piranhazinha de merda.
- Esse é o seu problema, seu escroto. Nem pensa direito antes de falar. Você...
Outra bofetada em seu rosto fez com que Charlotte sentisse o gosto de sangue. Odiava essa parte do trabalho, quando ficava cara a cara com os bandidos. Ás vezes era obrigada a sentir dor. Mas acima de tudo, precisava mostrar confiança.
- Escuta aqui... eu vou te encher de martelada até você virar uma poça de sangue... depois... vou cortar o que sobrar e guardar alguma coisa de recordação... que bom que você veio até mim. Há tempos que queria pegar uns peitinhos... ou talvez o escalpo. Você tem um bonito cabelo colorido.
Ele falava como um maníaco, e Charlotte percebeu isso. Ainda por cima tinha os olhos vidrados, indicando provável dificuldade de concentração. Mas acima de tudo, sabia bem o que fazer com as cordas, estava muito bem amarrada. Se quisesse sair dali, precisava dar um jeito de fazê-lo desamarrá-la.
- Eu imaginei que fosse frustração sexual... você está muito tempo sem transar, e as mulheres do porto nem te deram bola... – mais um tabefe, mas isso não a impediu de falar – e então você teve que raptar outras mulheres e estuprá-las. E pra esconder seu crime você as matou e retalhou. Grande ideia, Sherlock, uma pena que deixa muitos, muitos rastros.
- Cale a boca... FECHA ESSA MATRACA! Você... você não sabe do que está falando!
- Ora... não? Você não está aí, se remoendo de tesão, querendo logo me comer antes de enfiar esse martelo em mim? Ah... eu sei que está...
- Pois é isso que vou fazer, sua vaca!
E apontou a faca para seu pescoço, crente de que, ao soltá-la, ela não se moveria, deixando que a dominasse. Claro, para conseguir chegar até ele foi o que fez. Fingiu que estava com medo, atemorizada, e se deixou ser jogada no chão, onde ele arrancaria suas calças e enfiaria nela. Mas antes que ele conseguisse tocar nela, Charlotte lançou-se para frente e apoiando as mãos no piso, aplicou um chute para trás, acertando sua masculinidade.
Derrubá-lo foi mais fácil do que pensava. Apesar de grande, e claramente forte, Pierre estava magro e provavelmente cansado de viver nas ruas. Com um soco bem dado em seu queixo, seguido de um chute na lateral da cabeça ele despencou. Ela aproveitou para amarrá-lo bem e procurar seu celular. Encontrou um quartinho onde suas coisas haviam sido deixadas, além de provas bem incriminadoras. Fotos, provavelmente feitas com a polaroid que estava em cima da mesa, cobriam a parede, mostrando mulheres em posições humilhantes, chorando e até mesmo já mortas, os ferimentos ainda escorrendo sangue. Charlotte o odiou por completo.
Pensou em usar a faca, acabar logo com isso, dar a vingança que ele merecia. Mas não. Ligou para Marcos, esperando que ele fosse contatar Osvald. O detetive estaria tão brabo que era melhor sumir por um tempo. Ao menos estava viva.
- CHARLOTTE! Deus! Onde você está?
- No covil do bandido, Igram. Espere... – olhou pela janela – Posso ver o colégio de Maria de Fátima daqui. Provavelmente é próximo à praça da Justiça. Vou deixar a porta aberta, assim a polícia só precisa entrar. Eu já o amarrei.
- Você... você é incrível, Charlie... primeiro me deixa apavorado com seu sumiço e então...
- É, eu sei. Eu sou assim mesmo. Diga a Osvald que é um presente e boa sorte na promoção!
- Ei, do que está...

Desligou. Precisava sair logo dali. Mas antes... uma coisinha a fazer. Pegou o martelo que Pierre usaria nela e bateu com força em sua genitália, provavelmente provocando a perda de algumas funções. Ele acordou, mas ela desferiu um novo chute que o desmaiou novamente. Pronto. Agora sim. Pegou suas coisas e saiu. Mais um bandido preso. Vitória para Winston!

quarta-feira, 25 de março de 2015

Ótimos personagens vão bem com qualquer coisa

Ontem, por influência da Ana, que também fez uma postagem em seu circo, eu acabei fazendo um texto emocionado com nossos personagens de Tormenta RPG, em história na qual EU sou o mestre... pra variar. Mas, excepcionalmente mesmo, ás vezes eu consigo ser jogador, e nessas raras ocasiões eu me empolgo MUITO com personagens que crio, dando a eles histórias mais complexas e, se puder, escrevendo sobre. Quem trago hoje é o Padre Thomas, um brujah da Idade Média que se embrenhou na igreja pra construir seu exército justo. Infelizmente pra ele, no meio do caminho, surgiu um...

Pequeno Incômodo

Eu senti a criatura antes de vê-la sair das sombras. Era pequena, de aparência ignóbil e provavelmente pareceria uma criança escrava não fosse o fato de ser feita de escuridão. Tomaria por uma ilusão facilmente. Veio rastejante, as garras esfregando no chão produzindo um som agudo e maldoso. Daria medo a provavelmente a maior parte dos devotos dessa igreja. Mas não a mim, principalmente porque de longe eu era mais forte do que ele.
Por seu tamanho e também por parecer um pouco confuso eu o domei facilmente, colocando meu joelho sobre sua... nuca? E seus braços pendiam quase imóveis esmagados pelo meu punho. Ele guinchou, aparentemente surpreso pela inversão de papéis.
- Ai, ui! Larga! LARGA!
- Vejo que fala minha língua, criatura abissal. O que me espanta mais até do que sua aparição.
- Ai! Solta, seu... seu... padre fajuto!
- Para um diabrete seu vocabulário de impropérios é bem limitado, não?
- Quer que eu xingue sua mãe? Se for pra me soltar posso até ofender seus futuros filhos!
- Eu estou morto, imbecil, e não, eu vou lhe manter preso.
- Você não pode fazer isso!... pera... você não pode mesmo... eu... posso ficar intangível!
E se livrou de mim, voltando a ser um espectro e se materializando próximo, mas com as mãos levantadas em defesa. Pelo jeito compreendeu que caso ficasse físico provavelmente eu o pegaria de novo. Mais esperto do que parece.
- Então... o que você quer em meus aposentos? Imagino que não tenha vindo para ser humilhado livremente... ou vocês, servos do demônio podem se dar a esse luxo?
- Sua alma, é claro! Eu poderia fazer um bom uso dela!
- Eu pensei ter perdido a alma quando fui transformado em um servo de Caim... você está me dizendo que ainda a tenho?
- Mas é claro! Acha que porque agora você rouba a dos outros você deixou de ter sua ligação espiritual com Deus? É uma alma bem sujinha, mas por que não? Ela vai servir pra cumprir minha cota!
- Você tem um linguajar estranho... e achei que não pudesse falar o nome do Senhor, mas bem... não terá minha alma, criaturinha tola. Ela me pertence e não vou cedê-la a um verme tão infeliz.
- Que maldade! Só porque eu sou pequeno... sofro muito por isso, viu?
- Oh, como lamento saber...! Agora deixe-me, preciso terminar uma carta para o príncipe de Yorkshire.
- Vejo que está ocupado, então vou... atrapalhar! – ele pulou de onde estava para cima da minha escrivaninha, derrubando a tinta sobre meus papéis – Ah, que desastrado! Veja o que fiz!
- Quer ser capturado novamente, seu imbróglio?
- Que palavra feia, padre! Talvez eu nem precise me esforçar muito pra ter sua alma.
- Tenho pena de você, demoninho... aparentemente não percebe sua insignificância. Se quiser me incomodar, fique à vontade, mas se ficar ao alcance da minha mão, parto-lhe em dois. Não desafie um brujah.
- Ah, que medo... epa!
Saltou antes que eu pudesse pegá-lo, mas ficou muito mais atento e também recolhido. Suas costas pareceram se fundir às sombras, como se fosse se tornar uma delas.
- Quase, padre!
- Eu lhe avisei.
- Ah, padre... não faça isso... vamos, temos que ser amigos... eu vou roubar sua alma algum dia.
- Precisará se esforçar muito para isso, janota.
- Ei, o que eu disse de palavras feias?
- Percebo que você não é muito culto, Astolfo.
- Como é?
- Se pretende continuar me perseguindo e não posso me livrar de você... apesar de que talvez eu ainda possa realizar um exorcismo... então quero lhe nomear. Sabe, nomes tem poder.
- Astolfo?
- Exato.
- Tá de sacanagem, né chefia?
- Se compreendi bem, sim, você merece um nome ridículo para acompanhar essa forma.
- Você diz... assim?
Astolfo se moldou, crescendo exponencialmente e ocupando um espaço maior da cela, mas não o suficiente para eu não perceber o truque. Sua constituição me pareceu a mesma, um tanto ampliada e portanto apenas ilusória. Falsa. E fraca.
- Continua servindo muito bem, Astolfo. Agora, saia de meus aposentos.
- Eu vou lhe esmagar, seu humano inútil!
- Nem que realmente houvesse ficado maior.
- Quer tentar! – e derrubou alguns livros meus – Vê?
- Regna terrae, cantate deo, psállite dómino...

Em instantes ele havia sumido, desaparecido completamente. Mas algo me dizia que ele voltaria para me atormentar em outro momento. Peguei outro pergaminho e uma nova pena com um tinteiro e voltei a escrever minha correspondência. No fundo, por mais chato que ele pudesse ser, ainda era insignificante demais para eu me importar. Por hora.

segunda-feira, 23 de março de 2015

A despedida dos heróis

Hoje meu grupo de RPG, que toda segunda-feira eu mestro no Covil, recebeu uma baixa tensa. Mais de metade da mesa teve de nos abandonar por motivos diversos... alguns arranjaram compromissos, outros simplesmente não podem mais estar presentes. E no meio de uma emocionante despedida, tive que eu mesmo me controlar pra não chorar. Os personagens estavam lá, partindo, quando uma nova aventura estava prestes a começar, e tive que interpretar um a um indo embora. Bem... foi bonito, eu gostei. Graças à uma ideia da Ann, que achou que seria legal registrar o momento, estou trazendo aqui uma transcrição QUASE fiel deste momento. Espero que gostem...

Estavam reunidos, alguns recém-chegados, outros amigos de dias e uns poucos com laços tão fortes quanto o aço. De pé, no centro deles, o clérigo de Khalmyr esperava para executar sua justiça, e ia de um a um perguntando qual seria seu destino. Escutou pacientemente cada resposta, dava a eles um tempo para pensar, e então passava ao próximo. Aos poucos os caminhos eram decididos, e sorrisos tristes apareciam nos rostos deles.
- Eu não acho que estou pronto para o desafio, ainda tenho muito o que conhecer, lugares pra visitar... – sussurrou a próxima parte – coisas para roubar...
- Entendo, rapaz, se é esse seu desejo, você viajará comigo.
- Infelizmente... – disse Kou, o garoto-macaco – Inglórion não está mais entre nós para decidir, mas acho que seria certo que ele tivesse seu corpo devolvido ao seu plano natal. E Skhar... bem, ele não está em condições de falar nada, vai junto.
Todos olharam para o lutador que conheceram logo antes, e tiveram tão pouco tempo juntos. Mesmo apagado seu sorriso continuava o mesmo, de quem está sempre confiante. Seria uma aliança formidável, mas também um perigo enorme... e se ele se metesse em encrencas? Os outros olharam para o mago, que pigarreara para chamar sua atenção.
- Eu... não acredito que vou dizer isso, mas... estou muito preocupado com minha irmã. Sei que a missão é importante, e também vejo que sentirão nossa falta, mas espero que entendam. Eu preciso ir atrás dela. – olhou para sua amiga e mentora – Se puder vir comigo, Aurora...
- É claro! Eu não vou sair do seu lado.
- Que seja feita a vontade de vocês. – disse o clérigo – Mais alguém?
- Pessoal... ah, droga, não queria deixar vocês de lado. Não queria mesmo. Mas... – Garddus deu aquela fungada – Eu preciso ir, há um lugar que preciso estar, e pelo bem de quem gosto. Eu não queria, mas vou precisar partir, e vou fazer isso com o coração apertado. Vocês são muito especiais para mim, e mesmo que eu esteja longe, quero que pensem que estou com vocês. Eu posso viajar, posso não conseguir vê-los por um bom tempo, só quero que... pensem que estou aqui. Um dia, se puder, eu vou voltar, vou lutar ao lado de vocês novamente. Espero que esse dia chegue logo. Até lá, boa viagem, por favor, continuem bem. Eu estarei sempre no coração de vocês.

Segurando as lágrimas, Aranel, a última deles do grupo original, viu seus amigos unirem as mãos e se prepararem para ir, com Garddus no meio. O gigante de aço, portando o escudo, era quem parecia mais sereno. Tinha o coração livre. Com um sorriso tímido e triste ela se despediu. “Obrigado por tudo, clérigo de Valkária, que sua próxima aventura seja mais feliz. Adeus”

Numa vibe meio louca

Tudo bem, eu posso ter falado daquelas poesias, mas eu tenho algumas outras que são um tanto diferentes, como se fossem mais... estranhas? Não sei, é algo fora da casinha, mas que eu gosto um bocado. Sem mais delongas... um pouco da minha loucura.

Valsa Macabra

Pausa para um respiro
Eu tenho que me entregar
Há tanto tempo que espero
Para enfim me deitar
Sob o céu sem luas
Nuvens e nenhuma estrela
De colinas nuas
E uma terra tão cheia
Um monte de crianças a cantar
Sobre uma ábobora falante
E desatando a dançar
A melodia dissonante
Dos mortos infantes
Das risadas incessantes
Da não-vida alegre
E dos demônios selerepes
Quer entrar nessa ciranda?
Ainda há um lugar
Aqui ao meu lado
Neste campo sem luar

Vagando Torto

Incerto sou
Vagando por estas ruas
E perdendo tempo neste jogo
Compreendo cada vez menos
Mentindo de hora em hora
Sobre uma vida que não tenho
Morto estou
Sei que não durarei mais um dia
Entrei na boca do lobo
E não há mais como sobreviver
Fingindo quem sou agora
Perdendo minha alma enfim
Louco fiquei
Talvez eu esteja só me enganando
Quem sabe não está tudo bem
E o dia vá raiar uma vez mais?
Só sei que nada sei
Dessas minhas incertezas

Gula

Quer um pouco disto ou daquilo?
Talvez mais um tanto deste?
Ou quem sabe pedir mais disso?
Não importa
Você já tem muito a pagar
Pois quanto mais você pede
Mais eu vou te oferecer
Até você se fartar
Mesmo que essa hora não chegue
Eu vou insistir até te matar

Apenas mais uma dose

Droguei-me hoje mais cedo
Com um pouco de sonhos
Injetei direto na cabeça
De um jeito bem hardcore
Pensei em usar música
Mas parti pra poesia
Um pouco de realidade pra compensar
Meti minha cabeça nos jornais
Morte, corrupção e depravação
Acho que está bom
Não posso ser sempre sonhador
Já pensou se começo a voar?

Por dentro

Há um monstro em mim
Que quer você
Não o seu amor
Mas te ter
Roubar teu sorriso e tua paz
Teu calor, tua imagem
E nada mais
Não se importa com teu carinho
Ou se é bem ou mal amado
Só quer te ter ao meu lado
Não há sofrimento
Ou alegria
Apenas o momento de euforia
Um suspiro
E nada mais

sábado, 21 de março de 2015

Um dia eu comi cogumelos

Tem dias que eu resolvo aloprar, escrever o que vier na cabeça e olha lá. Ás vezes porque quero homenagear alguém, ás vezes porque quero satisfazer uma vontade mórbida ou simplesmente porque sim, não há uma boa razão para tudo. E exatamente por isso que tenho textos os quais me orgulho de tão loucos que são. Este, em questão, foi feito para agradar uma grande amiga, daqueles do kokoro, que quero guardar bem no fundo da alma. Saiba, Monichan, que foi com muito carinho mesmo. Te gusto mucho. E aproveitem o texto muito do louco!

ID, Ego e SuperEgo ao resgate!

PLIM! PLOM! PLAM! Três criaturinhas surgiram flutuando ao redor da cabeça dela, uma de asas de borboleta enormes, outro montado em uma vassoura e a terceira em cima de um pires giratório. Todos pareciam assustados com o que estava acontecendo.
- Ei, ei, ei! – disse o rapaz – Mas o que é isso? O que ela está fazendo? Alguém pelamordeDeus me diz o que está havendo.
- Você é tão baka, Tonhonhoin-san. Muito perdido-desu! – disse a garota de cabelos encaracolados no pires – É óbvio, mais do que óbvio, que ela está decidindo a roupa.
- Own, ela fica tão fofinha nesse vestidinho! – disse a com asas – Veja que linda essa cor!
- Eu acho que ela ficaria mó gata com aquele ali ó! – o garoto apontou para um tecido que mal cobria os seios do manequim – Vai por mim, ninguém teria dúvidas pra onde olhar!
- Ah, que rude, Tonton! – reclamou a de asas de borboleta – Assim ela poderia se sentir muito mal!
- Vocês são horríveis pra dar conselhos, nyet! Que vergonha Annabelle! – bufou a no pires voador – Por mim ela pegava aquilo ali, mais aquela bota lá e colocava junto dessa saia aqui e pronto! Estaria ótima!
- Mon cherrie, com essas três peças ela ia parecer que estaria indo pro Carnaval e estamos em outubro. Manera vai! – disse Tonton e então coçou a barba por fazer – Que tal se a gente tentar... só tentar... trabalhar em sincronia?
- Grande ideia, Tonton! – exclamou Annabelle – Eu acho fantástico, não concorda, Monichan?
- É, é... pode ser. Bem, vamos chegar a um consenso aqui. Ela deve ficar atraente, bem vestida e confortável, ok?
- Tudo bem, se por atraente você diz gostosa, bem vestida for com algo que seja do gosto dela e confortável for até onde dá...
- Isso aí, Tonton. Agora... vamos nessa!
As três “fadinhas conselheiras” começaram a circular em volta de sua cabeça, acompanhando seus movimentos pela loja, tentando achar algo que combinasse. Tonton, responsável pelo Id e por toda a moral não tão elevada Dela, buscava por coisas mais exóticas e cheias de cintas, couro e capazes de despertar a libido. Annabelle queria torná-la bela, mas comportada, não exagerar em nada, como avatar do Superego. Cabia a Monichan, o Ego, driblar os dois e pescar só o que seria bom de cada.
- Ei, que tal aquilo ali? Parece bem bom e olha... vai dar um up nesses peitos...
- Relaxa aí, Tonton, que ela precisa conseguir entrar nesse negócio antes... vai morrer asfixiada antes de conseguir se divertir.
- Ah, mas essa blusa é tão bonitinha! Ficaria uma graça!
- É uma festa de aniversário num bar, Annabelle! Não um coral de igreja! Manera!
- Opa! Aquele parece bom! Monichan, que tal?
- Huuuuum... talvez, mas seria preciso...
- Que saia maravilhosa! Eu amaria vê-la numa dessas!
- É, tem um ar legal, quem sabe...
- Essa bota! Orra, precisamos dela!
- Cara, deixa eu pensar...
- Aiai! Que meigo esse laço! Temos que usá-lo!
- Agora chega! Tonton! Annabelle, aqui!
Ambos viraram para General Monichan, que agora utilizava um chapéu militar e estava diante de um enorme mapa da cabeça Dela. O pires voava de um lado para o outro, como se ela estivesse marchando.
- Senhores! Nossa missão é simples, porém de enorme perigo! Devemos escolher a vestimenta apropriada pra Ela e ainda manter alguma classe, estão me entendendo? Nada de ficar apontando boas opções sem analisar o todo e devemos, acima de tudo, ser condizentes com o que Ela quer, certo? – Monichan bateu no mapa bem no meio do que seria a área da “vergonha” – E ela quer aparecer HARD! Então me ajudem aqui!
- Sim, senhora! – disse Tonton batendo continência.
- Senhora Monichan, o inimigo se aproxima! – avisou Annabelle diante de um “radar”.
- O quê? Mas como?
- Aparentemente a vendedora notou nossa presença. Precisamos agir rápido antes que ela invada o perímetro!
- Tonton! Localize o corset que você estava olhando antes e veja se tem preço! Se não, prepare pergunta padrão número um e dois, em sequência!
- Como desejar, general! – Tonton programou as duas e vasculhou em busca de um valor que não localizou e então apertou dois botões.
Ela se virou para a vendedora e abriu um sorriso tímido, lançando as clássicas “Quanto custa?” e “Será que teria no meu tamanho?”. Tonton, Monichan e Annabelle seguraram a respiração até ouvir um “Vou verificar” e então soltaram o ar, relaxando um pouco.
- Monichan... sugiro que preparemos uma alternativa caso a vendedora surja com “outras opções”. – disse Tonton e então olhou em volta – Ei... que tal aquele...
- Não, não, Tonton! Minha vez! Monichan... eu estava olhando e sei que o local pede um pouco mais de ousadia, então pensei em... – e sussurrou algo no ouvido de Monichan que arregalou os olhos.
- Tem certeza de que isso foi ideia sua, Annabelle?
- Ah, sabia que tinha sido exagerado! Desculpe, eu...
- Não, não... adorei! Vamos esperar ela voltar e...
Subitamente a vendedora surgiu diante Dela e começou a enchê-la de perguntas e mostrar “outras opções”. Annabelle apertou os botões certos e as respostas vieram em sequência. A vendedora foi encurralada e obrigada a trazer as peças pedidas e então levou Ela para o provador. Tonton, Monichan e Annabelle ficaram esperando até que ela abrisse a porta e mostrasse a combinação. Os três ficaram boquiabertos e Tonton soltou um assovio.
- Uou! Que gata!
- Ficou maravilinda! Amei!
- Cara... ok... admito... eu pegava...
As três consciências viraram-se umas pras outras e cumprimentaram-se pelo bom trabalho feito.
- Sabe, a gente devia mesmo trabalhar mais vezes juntos! – comentou Monichan.
- Quando quiser, meu amor... tô dentro pro que der e vier.
- Eu ficaria muito contente, Monichan, Tonton.
- Bem... hora de vocês dois irem... deixem comigo por enquanto! E até a próxima!
PLIM! PLAM! Os dois sumiram e a garota do pires continuou ali, acompanhando sua Mestra de um lado pro outro até que sua intervenção fosse necessária.

O Desconexo Pensamento de uma Mente Perturbada

Na melhor percepção de tudo, tem dias que eu faço tanto drama que nem eu me aguento, e nessas horas eu acabo escrevendo as coisas mais dolorosas, mais profundas e mais tensas. No outro dia eu comentei delas, minhas poesias dolorosas, que vem aos borbotões, talvez me trazendo ainda mais tristeza. Ou quem sabe eu esteja apenas divagando sobre elas, sem sentido. Que seja, ambas estão aqui, as únicas que salvei... até agora. Nenhuma tem nome, é uma falha, mas não quero nomeá-las, acho que vai contra a proposta de escrevê-las. Espero que aproveitem também...

Olho, observo, aprecio e me perco
No desejo do teu beijo
Sinto, tremo, anseio e me deixo
Saber que não tenho teu zelo
Sofro, amargo, em lágrimas de doer
Só por pensar em você
Quero, temo, ouso ter
Esperanças que você possa me ver
Nada mais consigo construir
Castelos de cartas afundam um a um
Tantas coisas que queria dizer
Fazer
Crescer
Ser
E não sobra nem um sonho pra mim
Penso, amo, quase me deixo ir
Pro abraço de algo que não está aqui
Deito, durmo, finjo estar com você
É o melhor que eu posso fazer

A pressão da sua voz
Me dizendo o que fazer
As palavras saem como lâminas
Cortando minha carne
Meus pulsos estão atados
Não sei como prosseguir
Vivendo entre o sim e o não
Tendo ás vezes que mentir
Pra impedir que meu coração
Se parta em dois, três ou mil
O infinito agora faz sentido
É pra onde a mente vai
Quando se está tão perdido
Que não pode-se mais voltar
Eu só queria ter um minuto
Colocar meus pensamentos no lugar
Só tenho mais um segundo
E não sei onde vou parar

sexta-feira, 20 de março de 2015

Era só uma ideiazinha

Ok, o de hoje vai ser longo... beeeeem longo. Perdoem-me quem para aqui só pra dar uma olhadinha, mas quando eu comecei esse texto ele deveria ter umas duas páginas, e só. Acabou que ficou muito maior do que eu imaginava, e tão bom que ganhei mais elogios que esperava. Agora, não sei bem o que fazer com ele, talvez eu realmente o aumente e transforme em algo mais ou quem sabe eu engavete pra um livro de contos futuros falando desse lugar... ainda não decidi. Por hora, aproveitem!

O Herdeiro da Realidade

Chovia torrencialmente quando o tribunal ficou em silêncio com a entrada do réu. Caminhando a passos contidos, mais jovem do que a maioria esperava, mas velho demais para ser considerado só um desses noviços rebeldes, o homem calvo de tatuagens que lhe cobriam a careca, parou somente quando chegou ao banco alto, bem no meio da sala. De onde estavam, todos podiam vê-lo sem se esticarem. De repente suas mãos, atadas à frente, foram colocadas sobre o orbe do juramento e o meirinho começou a falar aquilo que teria que repetir.
- Eu, sob os olhares de todo o povo de Jericó, dos deuses e da grande tecnocracia...
- Eu, sob os olhares de todo o povo de Jericó, dos deuses e da grande tecnocracia...
- Aceito que estou sob julgamento, e que passei a ser testado pelo justo sistema dos três anéis...
- Aceito que estou sob julgamento, e que passei a ser testado pelo justo sistema dos três anéis...
- E enquanto estiver com o cordão do laço em meu pescoço não mentirei.
- E enquanto estiver com o cordão do laço em meu pescoço não mentirei.
- Então, sob o julgo dos meus iguais, me submeto a...
- Não posso falar isso, me desculpe. – interrompeu o réu muito calmamente.
Um burburinho estourou na sala lotada, muitos comentando a ousadia daquele homem, e o juiz teve que interromper o barulho com três batidas sonoras de seu martelo.
- Por Orim, Jacó e Manohm! Parem com isso!
- Minha deusa, homem, por que não falas o que te mandam?
- Porque não seria verdade.
- Como não?!?
Então o réu abriu as mãos e raios saíram de seus dedos e olhos, pulverizando os guardas. Ele saiu do altar que estava em direção à porta, como se não fosse nada.
- Aqui não há iguais a mim...
...
Douglas não podia chegar atrasado, seria a quinta vez naquela semana e era sexta, então pulou a cerca, correndo pelo beco. Há dias que não conseguia dormir direito e quando acordava sentia que sua adrenalina estava no máximo, ou seja, podia fazer qualquer coisa. Menos chegar na hora no trabalho. O corpo estava em um misto de cansaço e estouro de energia que não conseguia compreender.
O céu estava naquele tom de marrom que antecede a tempestade, o que era um bom sinal. Chuva era seu tipo de clima favorito, junto de ventos cortantes e nuvens carregadas. Mesmo que estivesse quase sendo arremessado pelo vento, sentia-se mais confortável com esse tipo de tempo que ninguém sai na rua a não ser obrigado, e no qual poderia caminhar tranquilamente. Sabia que nunca seria acertado por um raio ou algo do tipo mesmo.
Virou em uma esquina, esperando ver a saída do beco bem na frente do St. Donnuts, seu honrado local de trabalho, mas um enorme logo da loja ao lado, o feirão do Douglas McIntoshi (não relacionados), havia bloqueado a passagem. O caminhão monstro fazia isso algumas vezes por mês, geralmente quando uma nova queima de estoque, daquelas que o preço sobe 30% pra baixar 10%, estava pra começar. Nunca antes o garoto se amaldiçoou tanto pelo seu azar periódico.
- Mas que droga, como eu vou...
Uma estranha luz azulada surgiu de uma porta aberta logo ao lado, uma que Douglas não havia visto antes. Aquela iluminação fantasmagórica atraiu seu olhar, o fazendo entrar sem ser convidado. Deu-se com uma sala pequena e escura, o brilho que vira vinha de um pedestal bem no centro dela, no qual estava depositada uma esfera. Douglas não ouviu a porta fechar atrás de si, nem a viu sumir, solidificando-se à parede, muito menos reparou na sombra que surgiu logo atrás dele antes de tocar na bola. E aí tudo ficou errado.
O teto de repente virou chão, as paredes pareciam afundar como se fossem quase translúcidas e o pedestal se tornou uma coluna cobrindo todo o meio da sala. Uma mão cobriu sua boca antes que pudesse gritar e um homem de longa barba castanha e coberto por um manto cinzento parou o indicador sobre os lábios fazendo aquele som típico de pedir silêncio.
- Não é uma boa ideia gritar aqui, Doug, você não gostaria do tipo de gente que pode ouvir e responder ao chamado.
- Hum... hum-hm-hm!
- O quê? Ah, sim... desculpe, só... fale baixo. – e se afastou, por pouco não sendo empurrado pelo jovem – Calma, garoto.
- Calma? Que... o que está acontecendo? Por que estamos de ponta cabeça e não caindo? E o que diabos houve com a porta?
- Primeiramente, todas as perguntas podem ser respondidas pela palavra mais universal de todas: mágica. É mágica que nos sustenta, que nos transportou para outro plano e que te trouxe aqui também. Mais precisamente, MINHA mágica.
- O quê? Quê? Não, não, isso é idiotice... loucura... é...
- Sobrenatural? Inesperadamente sensato? Absurdamente genial? Sim, é verdade. E eu ficaria feliz se você reconhecesse isso.
- Você... está realmente biruta se pensa isso, velho. Eu quero sair daqui, vou perder meu emprego e está bem difícil...
- Com suas habilidades você não precisaria servir ao espinhudo do ruivo da lanchonete, Doug. Poderia ser dono de empresas enormes que mandariam nessas coisinhas. Aliás, provavelmente seria ser tão poderoso que nem se importaria com isso.
- Não sei do que está falando mas está começando a me assustar.
- Eu falo do verdadeiro poder, não aquela besteira de status social, montanhas de dinheiro ou um cargo político. Falo de dobrar tudo e todos à sua vontade, de explodir barreiras que forem lhe atrapalhar, de reduzir à poeira seus inimigos.
- Eu preferiria o dinheiro. Sabe, quero comprar um carro ano que vem...
- Ah, que seja! Você vem comigo!
- Pra onde? E como vamos sair daqui?
- Pelo portal é claro... pra onde, você pergunta? Pra que outro lugar se não o centro da magia como conhecemos, Jericó?
O velho tocou no pilar que passou a emitir um brilho intenso e azulado, exatamente como a esfera, e então um vórtice surgiu na parede, sugando ambos para dentro. Prestes a ser tragado pelo maior ralo energético que já vira, Douglas só teve tempo de pensar: “Eu só queria chegar no horário no meu emprego!”
...
As paredes agora eram firmes, estavam no seu devido lugar e o chão poderia ser chamado de chão sem qualquer chance de ser confundido com outra coisa. Meio difícil até considerando que agora Douglas o conhecia tão bem, o rosto grudado em um ladrilho gelado e sujo. Viu o velho ao seu lado, de pé e batendo as mãos nas roupas para espanar o pó. A sala era ainda menor do que aquela em que estavam antes, mas muito melhor iluminada, já que uma forte luz alaranjada entrava pelas janelas e porta abertas.
- Vamos, Douglas, não temos muito tempo antes que...
- ERMITH!!! Eu ouvi sua voz!!! – gritou alguém de não muito longe.
- Droga... precisamos sair daqui. Garoto, eu gastei um bocado de energia no teleporte para cá. Preciso que você...
- Eu o quê? Não estou entendendo nada aqui, velho, e pelo jeito... você não é boa coisa.
- Posso não ser! Mas garanto... as pessoas atrás de mim são muito piores. Agora, projete uma escada para baixo rápido! Ou seremos encurralados!
- Como eu faço isso?
- Só... pense! Projete ali no chão, bem perto daquele canto.
Com toda a força da sua concentração, Douglas imaginou alguns degraus descendo em espiral, surgindo da pedra e para baixo, em direção a não sabe-se o quê. Para sua surpresa, exatamente isso apareceu na sua frente e logo estavam correndo, pulando algumas séries para chegar mais rápido ao fundo. Lá em cima, seus perseguidores haviam encontrado a entrada e agora gritavam por reforços.
- Onde... onde isso vai dar? Fui eu quem fez... essa escada?
- Não, garoto, você só... Uopa! Conseguiu resgatar uma das várias saídas secretas que implantei nesta cidade... no três, um, dois, TRÊS! – saltou por sobre o buraco – Cuidado! Aqui... minha magia selou essas portas mas... só um pouco de poder direcionado e... pronto! Por favor, mire nesta parede... e me faça o favor de acertar com tudo que tem.
Douglas obedeceu, levantando as mãos sem saber o que fazer. Sentiu algo escapar dos dedos, um formigamento crescente na ponta deles, e então as pedras se moveram, dando espaço para um grande arco com mais uma escada. Tudo parecia tão fenomenal que o garoto se perdeu alguns segundos observando. As rochas do arco continham escritos em alguma língua antiga, a qual mexia com as memórias de Douglas, trazendo à tona lembranças há muito esquecidas. Uma dor de cabeça lacinante o fez cair de joelhos.
- Ermith! O que... o que é isso?
- Faz perguntas demais, Doug, não é hora pra isso. Venha, vamos. A passagem não durará muito tempo.
Quanto mais avançavam, mais Douglas percebia o surreal da situação. Atravessaram uma ponte sobre uma cascata que terminava em um lago ardente de águas violetas, subiram até o alto de uma torre para chegar a uma câmara de portais e acabaram em um salão no meio do mercado. Ninguém olhou pra eles quando saíram da geleca esverdeada, nem mesmo com as vestes do rapaz que com certeza não combinavam com o local. Assim como Ermith, praticamente todo mundo usava mantos de cores sóbrias, e os poucos que se metiam a um azul celeste ou vermelho vivo pareciam de uma casta mais elevada e andavam na multidão sem serem incomodados pelos vendedores. Um moleque esbarrou em Douglas e estava quase indo embora quando Ermith o segurou com sua mão cheia de anéis.
- Pirralho... devolva a carteira dele.
- Mas, senhor, não sei do que...
- No seu bolso esquerdo, eu vi. Agora, devolva ou lhe farei o favor de lhe tirar do sofrimento da fome... definitivamente.
De olhos esbugalhados o menino devolveu a carteira de Douglas e saiu correndo, praticamente chorando. Guardando o objeto recuperado no bolso, o garoto deu uma longa encarada em Ermith, analisando-o melhor.
- Você é um homem bem duro, velho.
- Aprende-se com o tempo que para certos tipos de má criação a solução é ser uma ideia pior de futuro. Ele vai entender em alguns anos.
 - A situação tá tão ruim assim por aqui? Por que ninguém faz nada?
- É exatamente por fazerem que pessoas como eu existo, Doug. A maioria aqui já se rendeu à depravação e sobra às crianças trilharem o caminho errado, já que ninguém vai ensinar o certo. Nem todos são como eu e você, que possuímos um grande poder mágico. Na realidade, uns bem poucos conseguem fazer mais do que o be-a-bá. Venha, estamos perdendo tempo demais aqui. Tenho duas ou três coisas a fazer antes de te levar aonde precisa ir.
Passaram por alguns distritos bem diferentes e Douglas notou como o lugar ia do essencialmente mundano, com prédios que eram uma mistura do Brasil colonial com maquinários da Inglaterra vitoriana, ao absurdamente mágico, como quando entraram no duto de éter que os levou aos jardins superiores. Ali, Ermith os fez caminhar pelas sombras, evitando sempre que podia um grupo de senhoras de vestido roxo.
- Quem são elas, afinal? – perguntou Douglas depois de mudarem a rota pela quarta vez.
- Encrenca. Um grupinho que vive aprisionado em dogmas tão antigos quanto o tempo. Nós as chamamos de Irmãs da Criação, apesar de preferir a alcunha Medonhas.
- Isso é bem maldoso... o que você fez pra ser tão perseguido?
- Eu não me submeti. Tudo que é necessário para se tornar um pária em... ah, ali está. Vamos ter que passar pelo canteiro central se quisermos chegar lá. Evite ser visto.
Mais fácil de falar do que fazer, Douglas ainda não trocara de roupas e seu visual chamava a atenção. Ermith sumiu de vista, mas o garoto precisou fazer uns dois dribles para não esbarrar nos vários grupos que caminhavam pelo espacinho de grama e vida por ali. Aparentemente essa era a área de lazer dos nobres, porque não viu nenhuma criança querendo surrupiar sua carteira de novo ou os maltrapilhos do mercado. Chegou ao outro lado e ficou olhando em volta, até que a mão cheia de anéis que já aprendera a reconhecer tocou seu ombro.
- Aqui, rapaz, é aqui.
Entraram em uma salinha pequena e apertada, cheia de véus, almofadas e alguns jarros de narguilé. Sentada em uma das almofadas na parede oposta uma mulher semi-nua, coberta por uns poucos lenços, fumava tranquilamente, olhando para o vazio. Ermith foi até ela e lhe deu um tapa, despertando-a do seu devaneio.
- MAS QUÊ... pai?
- Eu já lhe disse dezenas de vezes, Shesper, que não quero você tentando isso de novo! Sua cabeça não vai aguentar mais uma sessão dessas!
- Eu...eu... e você? Você fez aquele estardalhaço todo e saiu...
- Calada! Aqui não. Quero lhe apresentar alguém, Shes. Garoto, venha cá.
Douglas se aproximou com muita cautela. A cena fora tão louca que estava tentando entender. A mulher deveria ser só uns dois, três anos mais velha que ele mas tinha um porte muito mais imponente. Não parecia em nada com Ermith, a não ser pelos olhos. Ambos tinham os olhos azuis mais profundos que Douglas já vira e enquanto nele se tornavam como de uma águia, sempre astuto, tentando caçar sua presa, nela pareciam como dois lagos muito serenos, sábios. E era extremamente bonita, não daquele tipo suave que se vê em princesas Disney. Não, é o tipo de beleza que um homem precisa batalhar muito para ter o direito de apreciar. Tatuagens cobriam grande parte do seu torso e jóias adornavam seu pescoço, braços e orelhas.
- Shesper, este é Douglas, um terreno. Eu o trouxe para cá para ser treinado.
- Quê? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.
- Pai, o senhor sabe que não está em condições...
- Velho, eu não combinei nada disso...
- Quietos! ZIP! Os dois! Eu decidi isso por nós, Shesper, porque é o necessário e só Doug poderá suprir as nossas necessidades.
- Não... você não quer... eu me recuso! Não vou deixar você ser morto!
- Não serei morto, sua desmiolada. O máximo que pode acontecer é eu entrar em coma. Precisa ser feito! Um criminoso precisa ser capturado e julgado e não vou deixá-lo escapar disso, quebrando as regras mais uma vez.
- Você... você está louco!
- Doug... poderia me dar um tempo com minha filha?
- Todo o tempo do mundo, Ermith... eu estou caindo fora.
- Ah, não. Não está. – e estalou os dedos.
Douglas acordou em uma cama muito macia, muito confortável e superlotada. Ao olhar em volta se viu cercado de jovens dormindo de todos os gêneros e tamanhos, praticamente nús. A vergonha lhe subiu ao rosto rapidamente e começou a procurar um jeito de sair sem acordá-los. Estava quase conseguindo quando uma mão delicada segurou seu pulso.
- Ei... não vá... una-se a nós...
- Ahn... não... eu... preciso ir...
- Não, madame Shesper disse que você deveria ficar... venha... descanse um pouco... tire essas roupas...
Como que encantadas, a blusa e a calça de Douglas se desfizeram, caindo no chão e ele se viu sendo carregado de volta. Entrou em um mar de sensações que iam do terror ao prazer, do medo à confiança, do não ao sim. Esqueceu-se dos problemas, das confusões, das incertezas e das dúvidas. Esqueceu-se do que estava fazendo ali, de como chegar e das perguntas que precisava fazer a... qualquer um, não lembrava com quem devia falar. Quase esqueceu quem era, mas novamente seu pulso foi agarrado, e dessa vez a mão não era tão suave.
- Garoto, saia daí. Shesper! Diga a seus lacaios para largá-lo!
- Eles vão, meu pai, se for o que ele quiser.
- Arre. Douglas, sei que está muito bom e que pode querer ficar aí pra sempre, mas se não sair, serei obrigado a apagá-lo de novo.
Sem nem saber como, Douglas conseguiu escapar das garras sedosas daquela gente toda e saiu andando, sem olhar pra trás. Não queria pensar em voltar, não queria se sentir tentando, e naquele momento uma parte de si, uma com muito orgulho de quem ele era, sofreu um golpe. Estava irritado agora, e precisava descontar isso em alguém, então pressionou Ermith contra a parede e o seguro com o braço em seu pescoço.
- Você vai me dizer o que está acontecendo, velho, e vai me dizer isso AGORA!
- Eu... preciso... de ar... pra... falar...
- Ah, ok. – se afastou e então levou uma descarga mágica no peito que o fez voar contra a outra parede – EI!
- Lição mais importante, garoto, não desista quando está ganhando e não confie em ninguém só porque parece frágil. Você ficaria surpreso como minha garotinha é forte, por exemplo. Mas tudo bem... vou lhe dizer porque trouxe aqui. Fique sentado, a história é um pouco longa.
“Há uns vinte anos, mais ou menos, quando Shesper ainda era um bebê e todos estavam em harmonia consigo mesmos, uma bomba explodiu o Conselho dos Anciões. Mais de metade da cidade entrou em pânico antes que os remanescentes que não estavam na câmara na hora conseguissem restaurar a ordem. Tivemos assassinatos, roubos, e muitos outros tipos de crimes hediondos que nunca foram solucionados. No dia seguinte instaurou-se as Oito Regras da Unanimidade, que tornaram Jericó uma cidade ‘segura’ porém morta. Você viu as ruas que passamos pra chegar até aqui. Apesar de haverem pequenos crimes, os Justicares estão sempre rondando para manter todos em ‘paz’. Foi nesse meio que os mais velhos, os que haviam aprendido o que sabiam antes da bomba, ficaram insatisfeitos e iniciaram uma rebelião silenciosa”.
Ermith fez uma pausa para pegar um cachimbo e o acendeu com a ponta do dedo, fazendo subir uma fumaça amarelada, que cresceu e cresceu até tomar forma de alguns pessoas de mantos, desenhos bobos mas bem-feitos. Eles seguiam as palavras do velho.
- Alguns desses tiveram a brilhante de ideia de, pacificamente, ir alterando as estruturas para fazer um misto dos códigos antigos e novos. Seria bom, iria fazer o sistema alcançar o equilíbrio, se isso não gerasse conflito com os Guardas das Ideias, os caras de branco que nós despitamos no mercado. Eles são os pensadores, enquanto os Justicares... ah, deixa pra lá, você vai aprender logo. O importante é que pelo menos três dos rebeldes conseguiram grandes feitos e mudaram as coisas por aqui... causando muita confusão.
“Um deles foi a julgamento há uma semana e provocou o caos quando fugiu. Alegou que não haveria ninguém lá capaz de julgá-lo por não serem iguais a ele. Faz algum sentido, ele é o mais forte dos magos da região, acredita então que só alguém com o mesmo poder que ele pode tomar as decisões sobre seu futuro. Por isso eu te trouxe, você é o único aqui que poderia chegar a esse patamar. Só precisa... soltar-se primeiro”.
- Está me dizendo... que eu sou um mago poderoso e que vou ser treinado só pra levar um criminoso à prisão?
- É... bem, se depois quiser ficar por aqui, aprender mais, se tornar um servidor de Jericó e...
- Eu... eu não acredito! Mas como vocês são egoístas, hein?
- Você não entende mesmo, Douglas... deixar esse criminoso solto é...
- Pai. Chega. Se ele quer ir embora, deixe-o ir, é melhor pra todos nós, pra Jericó e pra sua saúde.
- Quieta, minha filha, eu estou velho mas ainda aguento alguma ação. E não, não vou deixá-lo ir embora. Ainda vou levá-lo a dois lugares e só então, se ele realmente não aceitar a missão, deixarei que siga seu caminho.
- Está bem, se é o que deseja, Ermith Moneal, o senhor é dono de seu destino. Eu... vou seguir o meu.
Sherpe virou as costas e entrou, deixando um gosto amargo na boca de seu pai. Apesar de brabo, Douglas se sentiu constrangido e pensou um pouco antes de falar.
- Ok, eu aceito fazer esse tour se... você prometer que vai me deixar voltar mesmo se eu disser não.
- Concordo. Não quero fazer julgar um criminoso sob raiva, ou acabará fazendo um mal julgamento do que lhe for apresentado.
- Temos um trato então. Agora, velho... o que você tem pra me convencer?
...
Não era o que Douglas esperava. Nem um pouco. A tal câmara onde o Conselho se reunia deveria ser talvez um marco agora, um memorando de como no passado as coisas estavam bem. O local, uma mistura arquitetônica do Parthenon com o salão de conferências da ONU, estava aos pedaços, ruínas que poderiam afundar alguém desavisado. O chão estava corroído como se tivesse sido banhado em ácido e sombras dos ocupantes das cadeiras marcavam as paredes, manchas causadas pela explosão e desintegração dos corpos. O ar em si era empesteado pelo cheiro do lixo e Douglas conseguiu ver que em alguns pontos haviam coisas deixadas por moradores de rua que invadiram o local. Era a representação máxima da dor na sociedade de Jericó.
Um homem se levantou do meio dos escombros, onde ele escondia suas poucas posses e chegou perto deles, mas Ermith o afastou com um truque de mãos. Outros viram e não tentaram mais nada, tinham medo da magia do velho.
- Este local um dia foi sagrado. Ninguém poderia usar mágica contra os outros, não haveriam discussões acaloradas e nunca, em hipótese alguma, seria tolerada discriminação.
- Pegaram quem implantou a bomba?
- Não importou, não queriam saber quem ou porquê nem como. Só era importante salvar a população da guerra que chegou às ruas. Mesmo aqueles que chegaram a investigar desistiram depois de ver o que se tornou este lugar. Eu quase desisti.
- Isso... é realmente terrível.
- Calma, garoto, não se precipite. Ainda há uma pessoa que quero que conheça. E não é muito longe daqui.
A área ao redor da câmara era um pequeno deserto particular. As construções ou haviam caído com a explosão ou foram demolidas para impedir que matassem mais alguém. Logo ao lado estava o principal ponto turístico de Jericó, o Salão dos Cinco Poderes, formado pelo tribunal, sala de justiça, prisão, centro dos justicares e o museu da memória, único local onde se poderia acessar as histórias do passado da cidade. Ermith foi entrando, sem se importar em ser visto, bem diferente de tudo que fizera até ali. Vários dos trausentes pararam para olhá-los e fugiram correndo depois de um tempo.
Entraram em um corredor longo e guardas os esperavam, prontos para impedi-los, mas Ermith lançou um único olhar e eles abriram uma brecha. Passaram por uma enorme porta de carvalho escuro, marcada com símbolos como das túnicas do velho. Um homem muito baixo e gordo os esperava do outro lado. Tinha os cabelos negros com uns tantos fios grisalhos, óculos de armação grossa e a túnica negra. Seu ar, no entanto, era nem um pouco sério, e seus olhos verdes saltavam de um pra outro.
- Finalmente veio até mim, Ermith. Imaginei que não fosse demorar muito.
- Você sempre sabe das coisas, Sebastian. Desculpe a demora, precisava mostrar a meu herdeiro o que ele deveria saber sobre Jericó e sobre nós.
- Está pronto para a última etapa, então? Sabe que pode não resistir a ela.
- Devemos prender esse criminoso e dar a ele um julgamento justo, Sebby. Ou eu não descansarei em paz.
- Opa, opa, calma aí! Como assim? Achei que você estava firme e forte, velho.
- Não, Douglas, eu não estou. Talvez eu possa sim sobreviver, mas a questão é... bem, deixaria Sebby falar com você.
- Olá, Douglas. Eu sou Sebastian Stone, o líder do conselho atual e também o único homem nesta cidade que ainda confia em Ermith o suficiente para não ter enviado todas as tropas atrás dele quando fugiu. E você, meu rapaz, é minha única esperança de termos um resultado positivo nesta desgraça toda.
- Eu já imagina... Ermith é o tal prisioneiro que não aceitou o julgamento.
- Precisamente. Apesar de discordar dele quanto ao poder de nosso júri...
- Nenhum deles teria cacife pra tanto! – reclamou Ermith.
- Ora, não disse que iria me deixar falar, seu velho carcomido? E se tivesse aceito que Sherpe participasse da mesa...
- Ela é minha filha! Usariam isso contra mim!
- É verdade, infelizmente. Apenas ela poderia lhe entender por completo, mas duvido que ficasse a seu favor.
- Então... vocês querem que eu seja o júri dele.
- Sim, meu jovem, você, um terreno, e ainda por cima um com uma força mágica tão grande...
- Mas... eu nem sei usar meus poderes!
- E acha que porque razão Ermith lhe fez atravessar toda a cidade? Há um portal em cada ponta dela, e você passou por todos, lhe permitindo sincronizar com a energia de Jericó. Os próprios deuses estão a seu favor agora e, mesmo que você não saiba como, será capaz de domar a intensa força que está dentro de si. Eu garanto isso.
Não havia como Douglas discordar. Desde que passaram pela câmara podia sentir que suas mãos formigavam constantemente, mas não era desagradável. Sentia ainda que poderia mover os objetos ao redor com o pensamento, produzir chamas e o que mais sua imaginação permitisse.
- Sim, meu caro, mas sugiro que não pense tão alto. Aqui nós podemos ouvir você gritar.
- Ah... desculpe...
- Tudo bem, eu te entendo. É normal entre os jovens.
- Mas... por que o julgamento de Ermith é tão importante?
- Ele é o último de sua geração que não cedeu ao conselho. Eu mesmo me tornei seu líder para tentar aplainar alguns temperamentos mais... fortes. Mas Ermith estava livre, e poderia fazer o que quisesse... se não tivesse se metido com o Príncipe Imperial.
- Oras, o garotinho precisava ouvir umas poucas e boas...
- Foi só isso? Ele falou com... alguém da realeza?
- Ele invadiou a festa de 18 anos do príncipe, o confrontou e após um intenso debate o fez ir contra doze dos treze membros do conselho que queriam enviar um exército para tentar reconquistar as fronteiras de Gideon! Diacho, Ermith causou um estardalhaço tão grande que tivemos sorte de não ter sido executado secretamente no pavilhão enquanto esperava o julgamento!
- Sorte nada... eles tentaram, eu os impedi. Simples.
- Isso... é muito louco.
- E é por isso que você, Douglas, precisa nos ajudar. Ou se tornará algo ainda pior. Se fizerem de Ermith um exemplo, ninguém mais vai contrariar o conselho quando forem injustos. E aí a cidade afundará de vez em sua própria sujeira.
Douglas olhou para os dois velhos e sentiu lá dentro que já havia aceitado. Era uma nova vida, uma bem diferente da que imaginava quando saiu de casa. E parecia ótima, se soubesse aproveitar as oportunidades. Sorriu e eles lhe responderam.
...
As pessoas não paravam de gritar, tentando fazer mais barulho que a tempestade do lado de fora, mas todos ficaram em silêncio quando a porta abriu e Ermith entrou. Parecia mais cansado que nunca, mas exibia um sorriso matreiro, de quem havia aprontado e sabia que não iam poder lhe punir por isso. Foi arrastado até o mesmo lugar onde dias antes fizera a balbúrdia de fugir e parou de pé, se erguendo mais alto do que parecia. Todos olharam para Sebastian, que presidiria o julgamento.
- Ermith Moneal, você volta a nós para ser julgado por seus crimes contra Jericó. Este é seu júri, você o aceita para prosseguirmos com o interrompido?
Ermith virou-se para olhar Douglas, o único sentado em uma tribuna vazia, que parecia muito sério em sua túnica azul-petróleo. O rapaz não sorriu de volta, mas tinha no olhar aquela eletricidade que fizera Ermith se atrair por ele. Seria um ótimo herdeiro de seus poderes caso tudo desse errado.
- Sim, meritíssimo.
- Douglas Gabriel Franco, você, um terreno, recebeu a missão de julgar Ermith Moneal e dar a ele um justo veredito. Acha que é capaz disso?
Douglas olhou intensamente para Ermith e depois para a multidão que esperava ansiosa.
- Sim, meritíssimo, eu me considero capaz de ser justo e honesto.
- Então... finalmente começaremos a decidir o destino de Jericó.